Desapego

José Pacheco
Mestre em educação da Criança,
ex-diretor da Escola da Ponte em Portugal

“Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos.”

 (Fernando Pessoa)

 

Escola é construção social, currículo é construção histórica e reflete ideologia. Até há pouco tempo e exceptuando algumas esparsas experiências, a Educação escolar era entendida apenas como treinamento no domínio cognitivo, sendo ostracizadas as dimensões do afeto, da emoção e até mesmo da espiritualidade. Ignorava-se que currículo não é apenas conteúdo, mas também múltiplas experiências proporcionadas ao aluno. Entre elas, a aprendizagem da autonomia. Então, adotemos o princípio kantiano, que nos diz que o objetivo principal da Educação é o de desenvolver em cada indivíduo toda a perfeição de que ele seja capaz.

Apresenta-se como imperativo ético que assumamos o desapego, sem o qual, apenas fomentamos crônicas dependências naqueles com quem compartilhamos a existência. Fomentemos uma autonomia, que não é autossuficiência e solidão, mas algo que se exerce relativamente ao outro, com o outro, sem desistir do outro, embora, como diria a Clarice Lispector, “aquilo que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesmo”.

A carta do meu amigo Jean dizia-me: “O meu pai faleceu nesta madrugada. É difícil exprimir tudo o que sinto. O meu pai viveu muito e bem, soube viver e soube morrer. Permaneceu lúcido até ao fim, e penso que não foram as dores físicas que o fizeram partir. Há cerca de um mês, ele disse-me: ‘Quando a vida já não pode ser melhor…’. Nos seus 87 anos, viu duas guerras mundiais e exerceu a profissão de professor. Nas últimas duas semanas de vida, já quase não se alimentava e falava com uma voz quase inaudível: ‘É sempre preciso partir… Sê feliz, Jean, tenta fazer o que puderes para ser feliz’. Agora que vejo estas palavras escritas no meu computador, parecem-me poucas. Eu sei que havia mais. Acho que o meu pai tinha aquela capacidade de dizer coisas por trás das palavras que dizia. Peço-lhe desculpa por este desabafo. Há tanta coisa ainda cá dentro! E há tanta vida ainda para viver!”

É bem difícil o desapego de pessoas, momentos e coisas. Está fora de causa que não amemos aqueles seres que se vão para sempre, mas talvez essas dolorosas partidas devessem ser bem mais suaves. A morte nada tem de trágico, a não ser para quem não viveu. A pessoa que mais vive não é a que conta maior número de anos, mas aquela que mais sabe sentir a vida.

Nas escolas ensina-se quase tudo, exceto a saber viver, para saber morrer. A tanatologia ensina o aprender a morrer, mas nunca estamos preparados para perdas e lutos. Quando um ser querido se vai para sempre, morremos para ele. E é fato que nunca nos ensinaram a desaparecer…

Por mais que a frase aparenta contradição, diria que desapego é compartilhamento. Mesmo na ausência se pode compartilhar – que o digam as práticas quânticas. Um mestre do desapego, o Dalai Lama, aconselha-nos a que, nem que seja por egoísmo, façamos alguém feliz – fazer alguém feliz, mesmo à distância, é um modo de exercitar o desapego.

Ao morrer, Alexandre Magno determinou que os tesouros conquistados fossem espalhados no caminho até seu túmulo e que suas mãos fossem deixadas balançando no ar, fora do caixão, à vista de todos. Nascemos nus, partimos nus, nada nos pertence. Não façamos listas de livros emprestados. Tenhamos a bondade de desaparecer, deixando um rasto luminoso de palavras e gestos, a iluminar novos caminhos de novos passantes.

 

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